Atividade de leitura
A seguir pode ler uns excertos do libro de Alice Vieira, Lote 12, 2º Frente, tirados dos capítulos 1 e 4.
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Excerto do capítulo 1
Uma noite a mãe chamou-me e disse:
— Vamos mudar de casa.
Assim de repente, como se me estivese a dizer a coisa mais natural do mundo. Com a mesma simplicidade com que costuma dizer “vamos à Baixa”, ou “vai arrumar o teu quarto”.
— Mudar de casa?
Acho que devo ter feito uns olhos enormes porque o meu pai, na brincadeira com a minha irmã Rosa, pareceu ficar de repente muito divertido e perguntou:
— Não sabes o que é mudar de casa? É pegar na tralha toda que temos aqui dentro e levá-la para outro sítio. Pronto.
Até parecia que eu era algum bebé, como a minha irmã, para me estarem a explicar as coisas daquela maneira. É claro que não gostei. Estive mesmo vai-não-vai para amuar, mas lá pensei com os botões que por acaso não tinha (as camisolas não têm botões) que não lucrava nada com isso, e fiz-me desentendida.
— E por que é que vamos mudar de casa? Já não cabemos nesta?
Antes que me respondessem já eu tinha media dúzia de justificações na ponta da língua, prontinhas a sair cá para fora: que a casa da Rita era mais pequena e ela não se queixava; que nós ainda tínhamos um quarto vago, a que chamávamos “o quarto da avó Lídia”, e onde ninguém dormia desde que ela tinha morrido; que já tinha visto muitos filmes na televisão onde as pessoas viviam às três e quatro no mesmo quarto; e que o meu pai andava sempre a falar na crise da habitação, por isso não devia ser fácil andar assim a mudar de casa como quem muda de pijama.
Mas já a minha mãe continuava:
— É uma história um bocado complicada...
Aí eu pensei logo: se alguém me diz que sou muito pequena para entender, então é que vem já a birra, que eu hoje não estou para graças. Mas eles parece que perceberam o que eu estava a pensar, pois a minha mãe continuou:
— Tu sabes que esta casa não nos pertence, é uma casa alugada. Agora o senhorio quer aumentar a renda, e por lei pode fazê-lo. Só que para o ano poderá querer aumentar outra vez, e depois mais outra vez, e por aí fora. E nós nunca mais temos sossego. Por isso o pai pensou que seria melhor fazermos um sacrifício e comprarmos mesmo uma casa para vivermos. Uma casa nossa, entendes? Vamos ter de pagar muito mais dinheiro agora, e durante uns tempos vamos ter talvez uma vida um pouco mais difícil para podermos pagar a casa a pouco a pouco, mas sempre é uma garantia de que ela nos pertence. No fundo, vamos pagar quase o mesmo que estávamos a pagar ao senhorio, com a satisfação de sabermos que de lá ninguém nos pode tirar. E que depois de nós ela será para ti para a Rosa. Que vocês nunca ficarão sem casa, haja o que houver.
Assim contado, nas palavras da minha mãe, confesso que era tudo muito bonito. Cheguei a ficar entusiasmada.
Uma casa nossa.
Talvez a ideia não fosse má de todo.
Excerto do capítulo 4
Era bom que fossem apenas os trapos a faltar nesta casa.
Olho para nós aqui dentro e cada um parece ter arranjado uma cara nova, um modo diferente de pronunciar as palavras, de olhar para quem está ao seu lado na mesa. Passo a vista por estes móveis que conheço desde sempre, e é como se os estivesse a ver na montra de uma loja, comigo dentro deles. Até o aquário está diferente e só tem água que correu por outros canos, outras torneiras.
Não são os trapos que faltam, não. São os cheiros. Esta casa nõ cheira a gente. Cheira a cimento fresco, a tinta deitada há pouco, a pó dos andaimes retirados há dias. Cheira sobretudo a vazio. E não há cheiro pior para uma casa, ainda por cima quando ela vai ser nossa para sempre.
O meu quarto não cheira a mim —e nada mudou para além das quatro paredes, chão e tecto. Só que estes móveis tinham consigo um lugar próprio, um espaço que era seu e que eles habitavam, como todos nós. Mudar de casa acho que é assim como se mudássemos a nossa pele e entrássemos noutra, em tudo igual. Só que é outra, e não a nossa.
É preciso encher esta casa, depressa.
É preciso que as paredes não sejam tão brancas. É preciso encontrar sempre alguma coisa, quando se enterram as mãos pelas almofadas dos sofás. É preciso vestir de nós esta casa. É preciso que o pai desarrume depressa o escritório para começar a saber onde estão todos os papéis que agora não encontra. É preciso que a avó Elisa tropece num brinquedo da Rosa —agora todos alinhados na prateleira mais baixa do móvel do nosso quarto. É preciso que a avó Elisa tropece nas minhas cadernetas de cromos —agora todas certinhas na estante, entre o País das Letras, das minhas aulas de português do ano passado, e As aventuras de Tibicuera que a mãe me deu no primeiro dia da mudança, quando o achou lá no fundo dos muitos livros que eram seus em miúda.
É preciso não ter medo da casa. Dar um grito sem receio de que alguma coisa nos caia em cima. É preciso dar gente a esta casa.
Acho que uma das razões que ainda me afastam dela é que ela não conheceu a avó Lídia, não guardou o seu riso, não ouviu as suas histórias. Na casa antiga, era como se a avó continuasse viva entre aquelas paredes a que se tinha apoiado, que tinham feito o eco da sua voz. Agora acho que perdi completamente a avó Lídia, que a deixei ficar sozinha na casa antiga, que um dia as pessoas que a forem habitar hão-de encontrar uma casa cheia de memórias, ao passo que esta casa não tem memória de ninguém.
Como explica o que significa “mudar de casa” o pai da Mariana?
Por que a Mariana teve que mudar de casa?
Que faltava na casa nova?
Se você mudou alguma vez de casa, ou de quarto, sentiu o mesmo que sente a Mariana?

